Os
arrastões em restaurantes chiques na capital paulista já tiveram uma
consequência, além de aumentar o número de seguranças privados: estão aflorando
o que há de pior na elite bandeirante. Já estava ouvindo aqui e ali mais
bobagens e preconceitos que o de costume, mas Mônica Bergamo e equipe, em sua
coluna na Folha de S. Paulo desde domingo (17), reuniram vários deles em um
pacotão – pelo qual sou imensamente grato.
Se o
planeta não for gratinado por nossa ignorância no meio do caminho, tenho
certeza que uma sociedade mais avançada vai utilizar esse texto para entender o
que deu errado em uma cidade como São Paulo. E não estou falando dos arrastões,
mas do discurso bisonho de nossa elite.
Não
tenho medo de ser assaltado em meu carro porque não tenho carro. Não receio que
levem minhas jóias ou meu relógio caro porque não tenho relógio. Não fico com
pavor de entrarem na minha casa e levarem tudo porque meu bem mais precioso é
um ornitorrinco de pelúcia. Não me apavoro em andar na rua à noite a não ser
por conta do risco de chuva. E por mais que vá a bons restaurantes de vez em
quando, devo ressaltar que nunca fui assaltado em nenhuma barraca de
cachorro-quente… Acho que já deu para entender o recado. Não tenho medo da
minha cidade porque, tenho certeza, ela não precisa ter medo de mim.
Ostentação
em um país desigual como o nosso deveria ser considerado crime pela comissão de
juristas que está reformando o Código Penal. Eles não estão propondo que
bulling seja crime? Ostentação é mais do que um bulling entre classes sociais.
É agressão, um tapa na cara.
Mais do
que uma escolha pelo crime, a opção de muitos jovens pelo roubo é uma escolha
pelo reconhecimento social. Um trabalho ilegal e de extremo risco, mas em que o
dinheiro entra de forma rápida. Não defendo essa opção, mas sabemos que, dessa
forma, o jovem pode ajudar a família, melhorar de vida, dar vazão às suas
aspirações de consumo – pois não são apenas os jovens de classe média alta que
são influenciados pelo comercial de TV que diz que quem não tem aquele tênis
novo é um zero à esquerda. Ganhar respeito de um grupo, se impor contra a
violência da polícia. Uma batalha que respinga em nós, que temos
responsabilidade pelo o que está acontecendo, seja por nossa apatia,
conivência, desinteresse, medo ou incompetência. A polícia e os chefes de
quadrilhas puxam os gatilhos, mas nós é que colocamos as balas na agulha que
matam os corpos e o futuro dessa molecada.
Os
carros blindados levam para as ruas da cidade a sensação de encastelamento dos
condomínios fechados, das mansões muradas, dos shopping centers ou restaurantes
caros. Sentimento falso, pois não são muros e chapas de aço que irão garantir
segurança aos moradores de uma metrópole como São Paulo. É bom como efeito
placebo, para se enganar, mas, mais dia ou menos dia, as “hordas bárbaras” vão
engolir a “civilização”. “Hordas” que estão chegando cada vez mais perto, como
reclamam os mais ricos.
São
Paulo tem mais de 11 milhões de habitantes, mas apenas uns poucos são
efetivamente cidadãos, com acesso a todos os seus direitos previsto em lei.
Lembra a antiga Atenas, com uma democracia para uns poucos iluminados e o
trabalho pesado para o grosso da sociedade, composta de escravos. Enquanto uns
aproveitam uma vidinha “segura” dentro de clubes, restaurantes, boates, lojas,
residenciais e carros, outros penam para sobreviver e ser reconhecidos como
gente. Para cada assassinato em Moema, mais de 100 são mortos no Grajaú. Só que
a morte de uma jovem em Moema causa mais impacto na mídia do que a de 100 no
Grajaú. Ou no Campo Limpo, bairro em que cresci. A gente fica sabendo por lá que
tem vida que vale mais que outras, por causa do dinheiro.
Qual a
causa da violência? A resposta não é tão simples para ser dada em um post de
blog, mas com certeza a desigualdade social e a sensação de desigualdade social
está entre elas. Muito do preconceito presente nos comentários trazidos pela
coluna da Folha abaixo vai no sentido contrário a uma solução, isolando os
ricos ainda mais, deixando-os alheios ao resto da cidade (por ignorância ou má
fé). Corta-se com isso a dimensão de reconhecer no outro um semelhante, com
necessidades, e procurar um diálogo que construa algo e não destrua pontes. Há
riscos de assaltos? Sempre há e eles vão acontecer, ainda mais em um território
que muitos têm e outros minguam. Mas deve se ter em mente que há atitudes que pioram
o quadro.
Temos
que garantir liberdades individuais e a segurança de usufruí-las. Combater a
violência, garantir o direito de sair sem ser molestado. Mas isso só será
possível com uma sociedade menos desigual e idiota. Ou a cidade será boa para
todos ou a aristocracia que sobrar após o caos não conseguirá aproveitar sua
pax paulistana.
São Paulo “tá um porre total, um tremendo baixo-astral”. Desde
que começou a onda de arrastões em restaurantes da cidade, a socialite e
tradutora Alexandra Silvarolli, a Alê, mudou a sua rotina. “Tô jantando mais
cedo. Vou às 20h30 e me ‘pico’ do lugar às 22h30.” Ela também adotou uma
política de redução de danos quando sai: “Tiro minhas joias, total”.
As estratégias para enfrentar esse momento chato têm sido mais
ou menos as mesmas: jantar mais cedo, usar roupas básicas, tipo jeans, para não
chamar a atenção, esconder o celular, providenciar a “bolsa do ladrão”: aquela
que não tem nada dentro e que não fará muita falta se for surrupiada.
“Tô morrendo de medo. Se levarem uma bolsa Hermès minha, vou
chorar mais do que tudo”, diz a decoradora Alessandra Campiglia, grudada em sua
Chanel. “Saio de casa sem nada. Meu marido leva a carteira dele.”
“Às vezes [você] senta em cima do celular no restaurante [para
escondê-lo do ladrão]. Mas, com uma arma na cabeça, eu faço o que for. Quando
me roubaram o carro, levaram até a nécessaire com absorvente”, diz a
apresentadora Barbara Thomaz.
Outra novidade é o “celular do ladrão”. “Já saí sem meu Blackberry.
Levo um telefone bem antigo, daqueles vagabundos”, diz Ana Tosto, mulher do
advogado Ricardo Tosto. “Outro dia, fui na Vila Madalena e pensei: ‘Vou com uma
roupa discreta, uma calça jeans’. Só uso aliança e um brinco de bijuteria. Mas
deixar de sair eu não vou.”
O medo está no ar e é assunto das rodas no circuito
Jardins/Higienópolis/Morumbi/Itaim Bibi. São bairros repletos de seguranças
privados. Ainda assim, viraram alvo de quadrilhas.
O arrastão ao restaurante La Tambouille, no Itaim, há duas semanas,
foi um marco. “Uma surpresa! Tá cada vez mais perto da gente. Os ladrões estão
audaciosos!”, diz Carola Porto, sócia da Agenda Black, grupo no Facebook que
reúne mulheres de alto poder aquisitivo.
“É um absurdo você ir a um restaurante e pensar que pode ser
metralhada. Teve arrastão em vários que a gente frequenta. O La Tambouille…
Acho absurdo, surreal”, diz Talita de Gruttola, voluntária no Hospital do
Câncer.
“São lugares aonde a gente vai sempre. O La Tambouille, o
Carlota, gente! E a Lanchonete da Cidade [nos Jardins]? É do lado de casa, vivo
lá com minhas filhas! Há dois meses comecei a ir só a restaurantes de
shoppings: no Rodeio do Iguatemi, no Ritz do Iguatemi, no Empório Central e na
Lanchonete da Cidade do Cidade Jardim”, diz a advogada Luciana Natale.
Numa roda de amigas que na semana passada se encontraram em
evento beneficente na joalheria de Jack Vartanian, nos Jardins, ela fala da
nova rotina. Champanhe na mão, conta que o grupo se reúne uma vez por semana
para almoçar. “Agora estamos indo ao clube Paulistano [na rua Estados Unidos].
Como somos todas sócias de lá, fica mais fácil e seguro. Dá para entrar,
estacionar o carro.” Daniela Cilento, uma das amigas, diz que não tem “medo de
nada, nada. Se bem que já passei por uns sustos”.
Recentemente, almoçava no Girarrosto, na avenida Cidade Jardim.
“Entra um cara mal vestido gritando para os seguranças: ‘Não me bate, não me
bate’. A Mika [sua amiga] já foi tirando o relógio, escondendo a bolsa. Era um
mendigo.” “É o que menos me assusta, sabia?”, diz Luciana. “Mas você hoje não
sabe se é mendigo ou se vai tirar uma arma”, diz Dani. “Um cliente deu R$ 10
para o homem, que disse aos seguranças: ‘Tá bom, eu saio. Mas vocês não vão me
bater lá fora, né?’.”
Chef de cozinha, Paula Passos conta que “no Kosushi [Itaim] é
que é legal. Tem um segurança de uns 3 m de altura!”. Mostra a foto que fez do
funcionário no celular. “Duvido que assaltem lá.”
“No dia em que tiver carro blindado, prefiro mudar de país”, diz
Dani Cilento. “É melhor morar na Suíça, né?”, responde Paula. “Ah, não. Deixar
o Brasil? Prefiro ter um carro blindado”, afirma Luciana. “Tem que fazer como
nos países árabes: roubou, corta a mão”, sentencia Dani.
A modelo Cassia Avila afirma que tem “orado para Jesus”. E evita
andar a pé.
Na semana passada, percorreu de carro os dois quarteirões que
separam a joalheria do marido, Jack Vartanian, na rua Bela Cintra, e o
restaurante Gero, na rua Haddock Lobo. Nas lojas vizinhas ao restaurante da
rede Fasano, 15 seguranças cuidam das vitrines de Dior, Louis Vuitton e NK
Store. Nem assim ela se sente segura.
Quando Cássia tentou entregar o carro ao manobrista, um
marronzinho disse que a multaria. “Olha isso, ou você é multado ou assaltado.”
Ela está no limite. “Não dá mais pra morar no Brasil. Nossa filha [de nove
meses] vai estudar em escola americana. E depois vamos nos mudar.”
Para não abrir mão do prazer de jantar fora, Carola Porto diz
que começou a frequentar os restaurantes que já foram assaltados. “Eu acho que
um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar. No sábado eu fui ao La Tambouille.
Tava tranquilo.”
“Com essa história de arrastão, prefiro convidar as pessoas para
jantar na minha casa”, diz a administradora Flavia Sahyoun. “Roubam tanto no
Brasil que pensam que todo mundo que tem dinheiro é porque roubou e não porque
trabalhou. Virou um país tão avacalhado…”
Depois do assalto à pizzaria Bráz, em Higienópolis, que ela
frequentava, a atriz Laura Neiva pede comida em casa. “Tenho um pit bull e
agora só ando por Higienópolis com ele.” Outro morador do bairro, o humorista
Tom Cavalcante não corre mais nas ruas. “Amo SP e estou muito triste.” Ele
também evita ir a restaurantes.
A consultora Fabiola Kassin só vai a lugares “dentro de shopping,
de tudo. A gente vai no bar do [hotel] Fasano, no [hotel] Emiliano.
Infelizmente, virou isso, uma bolha, não tem como estourar”.
“Alguém tem que tomar atitude. Sei lá, governo. Daqui a pouco, o
Exército entra na rua. Está mais seguro morar no Rio do que aqui. Está
ridículo. No Rio você para no quiosque e toma uma cerveja. Aqui não posso nem
ir ao bar da esquina. Não tem mais rico, pobre, assaltam qualquer coisa,
boteco, restaurante. Virou uma zona. Quando saio, tiro tudo, tu-do!”.
O hábito já gerou aborrecimentos paralelos. Outro dia, Fabiola
desparafusava uma pulseira para tirá-la do braço, escondendo a joia enquanto
comia pastel nos Jardins. “Perdi o parafuso.”
“”É um absurdo você ir a um restaurante e pensar que pode ser
metralhada” – TALITA DE GRUTTOLA
“Celular eu levo dois, se
roubarem um o prejuízo não é tão grande.” – CAMILA DINIZ
“São lugares aonde a gente
vai sempre. O Tambouille, o Carlota, gente!” – LUCIANA NATALE
“Tem que fazer como nos
países árabes: roubou, corta a mão” – DANI CILENTO
PS: O
texto ganhou uma boa repercussão, o que é ótimo. Não precisam concordar comigo,
aliás prefiro que discordem. E podem me espinafrar à vontade – o nipobrasileiro
é, acima de tudo, um forte. Mas, por favor, vamos interpretar o texto, vai! Por
exemplo, o que o blogueiro quer dizer quando afirma que seu bem mais precioso é
“um ornitorrinco de pelúcia”? Será que ele não tem cama, nem TV, nem computador
ou celular e vive apenas com um felpudo animal em uma choupana, tecendo sua
roupa com linho que colheu do campo e cultivando seus próprios remédios? – rs.
Teve gente que procurou desesperadamente na internet para provar que eu tenho
smartphone ou notebook. Pessoal, se lessem meu blog diariamente veriam que eu
mesmo já escrevi várias vezes que tenho ambos (carro não adianta porque não
tenho mesmo). E discuto as contradições do capital. Mas este texto não é sobre
ter, mas como nos relacionamos com esse “ter”. E o medo de perder e deixarmos –
com isso – de “ser”. E o que é precisar “ter” para “ser” e os impactos disso na
sociedade. Prometo voltar ao assunto mais tarde. Enquanto isso, discutam de
maneira saudável.
EXTRAÍDO
NA ÍNTEGRA DO ENDEREÇO:
http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/a-criminalizacao-da-ostentacao-por-sakamoto
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