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sábado, 24 de outubro de 2015

"Leitura da Natureza" é aula de Geografia diferente

Escola José Arinaldo Alves


O contexto


Antes de falarmos especificamente desta metodologia "Leitura da Natureza", é importante fazer uma breve exposição sobre o contexto em que foi utilizada. 

A Escola José Arinaldo e a comunidade
A Escola Municipal José Arinaldo Alves está localizada no extremo sul da zona urbana do município de Macaíba, região metropolitana de Natal, Rio Grande do Norte. Foi construída há 15 anos e tem matriculados pouco mais de duas centenas de alunos em turmas de 6º ao 9º ano. A unidade de ensino é pequena, tem apenas quatro salas de aula, e atende a crianças e adolescentes das comunidades do Vilar, Lagoa Grande, Loteamento Esperança e Campinas. 
Alunos da escola se destacaram na Olimpíada de Matemática
Estas comunidades tem um índice de violência relativamente alto entre os jovens, fato que pode estar relacionado à vulnerabilidade social. Esta situação das comunidades é constatada pelas frequentes matérias jornalísticas que registram assassinatos e assaltos envolvendo jovens e o uso e/ou tráfico de entorpecentes. Nós, professores da escola, com total apoio da direção, desenvolvemos atividades inovadoras visando sempre reduzir a evasão escolar, pois acreditamos que a frequência à escola pode contribuir consideravelmente para afastar os jovens das drogas e da criminalidade. O ensino de Geografia com uso exclusivo de quadro e livro didático torna as aulas excessivamente teóricas, monótonas e sem vida. Justifica-se então o uso de metodologias que envolvam atividades de campo e o debate direto dos temas e problemas do cotidiano do aluno, sob o ponto de vista geográfico. A comunidade escolar, próxima dos limites urbano/rural, ostenta uma paisagem diversificada, com grande quantidade de habitações não planejadas e mal acabadas, com menos de 25 metros quadrados, ladeadas por pequenos comércios e dezenas de igrejas evangélicas e pequenas capelas católicas. Ali, o saneamento básico ainda não é uma realidade, embora 90% das ruas já disponham de pavimentação a paralelepípedo. Já adentrando a zona rural encontra-se uma escassa vegetação de tabuleiro costeiro, principalmente nas imediações da estrada vicinal que dá acesso à comunidade do Lamarão, produtora de batata doce. Na margem oeste desta estrada encontra-se o Sítio Araçá, objeto deste Projeto de Estudo, do qual trataremos a seguir.

O Sítio Araçá
O Sítio Araçá é uma propriedade rural localizada a 3 quilômetros do centro do município de Macaíba/RN. Encontra-se ao lado da estrada que liga o bairro da Lagoa Grande à comunidade do Lamarão, mais precisamente na margem sul da lagoa Grande, que dá nome ao bairro. O sítio existe há menos de uma década. Antes, era um terreno com vegetação rasteira, resíduos de tabuleiro costeiro e onde o solo desmatado, estava compactado e pobre. O proprietário, o engenheiro civil Irineu Andrade, iniciou então um trabalho de recuperação dos ecossistemas. O primeiro passo foi recuperar o solo. Para isso ele despejou ali caminhões de vegetações mortas, restos de podas de árvores que foram recolhidos na cidade. Passado o tempo necessário, a vegetação se decompôs no solo e formou uma nova camada, que chamamos de Horizonte O ou orgânico. 

Ele começou, então, a plantar e cultivar uma microfloresta. Centenas de espécies de árvores nativas e de outras regiões do país foram sendo cultivadas. A maioria delas teve êxito, desenvolveu-se e já está dando sombra e frutos. Na irrigação utilizou técnicas simples de captação de água da chuva e do solo.
A água
Com a formação do solo orgânico e a consequente recuperação da sua permeabilidade, a água passou a infiltrar-
se com facilidade. Ao longo dos anos as chuvas levaram aquele solo e subsolo à saturação, fazendo com que a água aflorasse nas áreas mais baixas do sítio. Uma torneira foi instalada em uma fonte e um pequeno lago foi construído com restos de rochas no centro de uma pequena floresta tropical. O dossel das árvores mais altas já se aproxima dos dez metros. Pequenos animais, pássaros e insetos já povoam o sítio. Começam a ser percebidas no interior da mata características de um microclima, como a temperatura mais baixa e a umidade relativa do ar mais alta.

A casa ecodidática
Simultaneamente e em harmonia com tudo isto acontecia outra atividade no sítio, o reaproveitamento dos materiais. Irineu passou a recolher pessoalmente restos de materiais 
em construções e terrenos baldios. Ele recolheu e transportou, no seu próprio carro, muitos materiais como portas, janelas, telhas, tijolos, cerâmica, caibros, ripas, pedras para ornamentação arquitetônica entre outros. Construiu no sítio quatro pequenos galpões para armazenar os produtos e começou a reutilizá-los na construção de uma casa ecodidática.
Há pouco mais de sete anos Irineu iniciou a construção de uma casa na área central do sítio.
Ela tem dois pisos e está ficando muito bonita, rodeada por alpendres, com uma varanda para o pôr do Sol e vista para a lagoa Grande. Segundo ele, para a construção, apenas o cimento foi comprado, todos os outros materiais foram reutilizados e recolhidos em caçambas de lixo. A casa ecodidática, como ele orgulha-se de chamar, ainda não foi concluída. Mas, já é um exemplo de ecologia e de didática. Há muita madeira em suas paredes, teto e pisos, mas nenhuma árvore foi derrubada para a sua construção. Ela é a prova de que somos a geração do desperdício. Jogamos no lixo muitas coisas que podem e devem ser reutilizadas.

A preparação para a aula
Numa tarde de sol forte, na última semana de março, levei os alunos a um campo de futebol ao lado da escola. Perguntei a eles como se sentiam ali no Sol enquanto eu falava a respeito da importância da cobertura vegetal do solo para a infiltração da água. Todos reclamaram que o Sol incomodava e que seria bem melhor se houvessem mais árvores em volta do campo. Pois há apenas duas. Nos reunimos então embaixo de uma das árvores e pedi que relatassem o que sabiam sobre as mudanças na paisagem daquele lugar. Foram vários os relatos, todos convergiam a um ponto comum: o desmatamento.
Há cerca de trinta anos atrás, nenhum dos alunos havia nascido, mas ouviram relatos de seus pais e avós de que ali existira uma densa mata. Passamos a debater, então, sobre:
- Precisava desmatar para construir?
- Ou seria possível construir casas ou plantar cereais sem antes desmatar todo o terreno?
Falamos sobre agroecologia e sustentabilidade; sobre a convivência possível e saudável entre a agricultura familiar e a preservação da mata nativa; sobre a importância da arborização das áreas povoadas para aumentar a qualidade de vida e, é claro, para evitar a impermeabilização do solo. Parecia para eles impossível conceber que houvesse harmonia entre alguns desses conceitos.
Falamos do Sítio Araçá, que fica próximo à escola. Agendamos a aula de campo para um sábado quarenta dias à frente e começamos então a aprofundar o debate sobre o assunto. Utilizamos o livro didático para nos apropriarmos dos conceitos de desmatamento, empobrecimento do solo, erosão, assoreamento e também reflorestamento e lençol freático.
Avaliação
Decidimos que a avaliação seria um breve relato da experiência. Um texto onde cada aluno descreveria, em rápidas palavras, o local visitado e relataria o momento ou paisagem que julgasse mais interessante. O aprimoramento da produção textual também foi um dos objetivos. Para SILVA[1] (2004), "A visão é o sentido fundamental para o pesquisador geográfico [...]" e acrescenta:

Quando se descreve o que é observado é o intelecto que fala por meio da comunicabilidade escrita ou verbal. A visão, na observação do senso-comum, fornece informações para o intelecto[...].

Para melhor registrar aquela atividade de campo precisaríamos de imagens. Levei então minhas câmeras fotográficas para a aula e pedi que os alunos fotografassem a paisagem que mais chamou a sua atenção. Avisei que as fotos ilustrariam seus textos. Resolvi então imprimir e encadernar os textos em um pequeno livreto, pois acredito que a impressão valoriza a produção do aluno. O resultado foi um livreto colorido com belíssimas imagens e ótimos textos.

A Aula de Campo
A aula aconteceu na manhã do sábado, 23/05/2015, e contou com a participação de 14 alunos do 8º e 9º anos. Nos reunimos às 7h na frente da escola, onde aconteceu um imprevisto. O carro que nos conduziria teve problemas mecânicos e não pôde vir. Fomos em busca de um carro para alugar nas ruas próximas à escola, mas todos estavam ocupados. Já pensávamos em adiamento quando o aluno Artur Dantas convenceu o seu pai a nos levar em seu carro. Como só dispunha de 10 lugares eu levei quatro alunos em meu próprio automóvel.
Eram aproximadamente 8h quando chegamos ao Sítio Araçá. O morador do sítio, o Café, nos recebeu, abriu o portão, nos entregou água gelada e dirigiu-se seus afazeres nos deixando à vontade para explorar o ambiente. Começamos então a aula com as instruções básicas para a visita, explicando que não podíamos poluir ou degradar o sítio. Também alertei sobre a possibilidade de encontrar algum animal silvestre e orientei para que mantivessem a calma.
Começamos a visita com o relato da origem do Sítio Araçá e enquanto relatava ia mostrando cada parte do sítio: os depósitos de materiais reutilizáveis, os viveiros de mudas de árvores, as áreas agroecológicas onde o plantio de hortaliças se misturam com a mata nativa, a fonte natural onde aflora água cristalina no centro de uma área reflorestada - uma "mini" floresta,  e, por fim, a casa ecodidática totalmente construída com materiais reutilizados.
Reflexão e susto
No meio da mata, sentamos em círculo, em volta da fonte. Pedi que todos ficassem quietos e fizessem silêncio absoluto por três minutos. Prometi que neste momento poderíamos ouvir a mata. O vento, o balançar das folhas das árvores, os sons dos grilos, dos pássaros e das águas da fonte correndo por entre as folhas e raízes no chão da mata. Foi uma experiência maravilhosa. Com pouco mais de um minuto em silêncio já ouvíamos vários sons da natureza. Então veio o susto. Estávamos totalmente concentrados quanto um sapo, morador da fonte, resolveu pescar. Como estávamos quietos ele se sentiu à vontade para pular em direção a um pequeno peixe que nadava na fonte. Foi um susto, mas foi engraçado porque todos nós nos assustamos com o salto do sapo.


Oficina de fotografia e o livreto "Leitura da Natureza"
No meio da mata realizamos uma rápida oficina de fotografia onde cada aluno recebeu as noções básicas para utilizar uma câmera fotográfica profissional. Expliquei como segurar o equipamento, como se posicionar em relação à paisagem a ser fotografada e como tirar proveito da luz natural. Então começamos a fotografar. Pedi que escolhessem uma área do sítio cuja imagem merecesse ser "eternizada" em uma fotografia. O resultado está no livreto "Leitura da Natureza" que conseguimos produzir. Diagramei os textos junto com as fotos e imprimi, em minha casa, com uma impressora jato de tinta. Na II Semana Literária de Macaíba - SLiM, promovida pela Secretaria Municipal de Educação, este livreto foi exibido ao público. O proprietário do Sítio Araçá,  Irineu Andrade, esteve presente e mostrou satisfação em compartilhar suas ideias sobre sustentabilidade.

Espaço em movimento
Tentamos com essa atividade introduzir, ainda que superficialmente, noções de que o espaço não é definitivo nem imutável. Pelo contrário, ele está sempre em processo de transformação. Concordamos com SILVA (2004), quando ela afirma que:

O sítio de uma cidade é o local físico onde ela está 'assentada' e a curta vida humana não tem tempo de testemunhar as alterações que a natureza 'pura' provocará na sua morfologia. Mas cabe ao geógrafo explicar que essa morfologia não é perene, está subordinada não só a alterações, como fruto dos processos geológicos (que o homem não verá), como de processos sociais na superfície, na terra.

Conclusão
Concluímos com a certeza de que este é o método de estudo da geografia que se mostrou mais eficaz e também o mais agradável. Eu sempre afirmo nas minhas aulas que só há aprendizagem geográfica quando resulta em mudança de ponto de vista e melhora nas atitudes e comportamentos. Os alunos relatam que têm conhecimento do quanto o homem tem poder para transformar o espaço destruindo a natureza. Pudemos enfim, nesta aula de campo no Sítio Araçá, observar que o homem também poder para reconstruir os ecossistemas e transformar o espaço devolvendo a vida à flora e à fauna. As atitudes e comportamentos dos alunos mostrarão no cotidiano os resultados deste trabalho.
As aulas de campo e visitas ao Sítio Araçá terão continuidade. Planejo envolver todos os estudantes desta escola, incentivando o reflorestamento e os hábitos sustentáveis.